Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 26

Terça, 29 abril 2025

Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 26

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“Camões: Embarca Engenho e Arte” – uma história trágico-marítima

2425 camoes26 01(…) Outro também virá, de honrada fama,
Liberal, cavaleiro, enamorado,
E consigo trará a fermosa dama
Que Amor por grão mercê lhe terá dado.
Triste ventura e negro fado os chama
Neste terreno meu, que, duro e irado,
Os deixará dum cru naufrágio vivos,
Pera verem trabalhos excessivos.

Verão morrer com fome os filhos caros,
Em tanto amor gerados e nacidos;
Verão os Cafres, ásperos e avaros,
Tirar à linda dama seus vestidos;
Os cristalinos membros e preclaros
À calma, ao frio, ao ar verão despidos,
Despois de ter pisada, longamente,
Cos delicados pés a areia ardente.

E verão mais os olhos que escaparem
De tanto mal, de tanta desventura,
Os dous amantes míseros ficarem
Na férvida e implacábil espessura.
Ali, despois que as pedras abrandarem
Com lágrimas de dor, de mágoa pura,
Abraçados, as almas soltarão
Da fermosa e misérrima prisão.

Luís de Camões, “Os Lusíadas”, V, 46-48.

O gigante Adamastor profetizara, ficcionalmente, numa noite aterradora de novembro de 1497, mil e uma vinganças: “Eu farei de improviso tal castigo, / Que seja mor o dano que o perigo!” (V, 43); “Naufrágios, perdições de toda a sorte, / Que o menor mal de todos seja a morte!” (V, 44).

Aproveitando o facto de a obra ser escrita mais de meio século depois, o narrador assinala alguns acontecimentos trágicos, como a morte de Bartolomeu Dias, que havia descoberto o Cabo, em 1488. Pois bem, aí morreria – qual vingança do monstro – em 1500. E o mesmo se diga de D. Francisco de Almeida, 1.º vice-rei da Índia, morto num combate contra os Cafres, ao norte do Cabo da Boa Esperança, em 1510 (cf. V, 45).

Mas o caso mais impressionante foi o da “triste ventura e negro fado” por que passaram Manuel de Sousa Sepúlveda, a esposa – a bela D. Leonor de Albuquerque – e os dois filhos de tenra idade, na sequência do naufrágio do galeão São João.

Aconteceu em meados de 1552 (24 de junho), um ano antes de Luís de Camões navegar pelas mesmas paragens, mas em direção a Goa.

Tendo como capitão Manuel de Sousa Sepúlveda, que servira na Índia durante 17 anos, o galeão partira de Cochim “carregado de riquezas e com quinhentas pessoas a bordo”.

Naufragou perto Cabo da Boa Esperança, mas o capitão, a família e muitos outras pessoas conseguiram escapar a bordo de dois batéis, iniciando uma longa caminhada pela costa moçambicana, em direção ao rio Tembe, onde havia Portugueses.

Sofreram “trabalhos excessivos”, obrigados a lutar contra a fome, a sede, o cansaço, os ataques de animais selvagens e dos cafres locais. E foi num desses assaltos que os Sepúlveda foram despidos e enviados para o mato.

Escreve Isabel Rio Novo que D. Leonor acabaria por ceder “à exaustão e ao desalento. Despida, com os filhos famintos, sentou-se no chão, envolveu-se nos cabelos e fez uma cova com as próprias unhas, onde se enterrou até à cintura. Os náufragos prosseguiram a caminhada; apenas um servo e algumas escravas ficaram ao lado de D. Leonor. Entretanto, Manuel de Sousa Sepúlveda, que fora à procura de frutos silvestres, encontrou um dos filhos morto, a mulher em choque diante do pequeno cadáver, o outro filho moribundo nos braços. Sem dizer palavra, o pai abençoou a criança morta e enterrou-a. Ausentou-se novamente, e, quando voltou, já D. Leonor e o outro filho tinham morrido. As escravas que assistiram ao lance e sobreviveram para narrar a tragédia contaram que o homem se sentou ao lado dos cadáveres e aí permaneceu durante algum tempo, de rosto afundado nas mãos. Depois, ele próprio enterrou a mulher e o filho. A seguir, embrenhou-se no mato e nunca mais foi visto. As escravas e o servo seguiram na direção dos restantes náufragos e conseguiram alcançá-los. Foram essas três escravas que, juntamente com oito portugueses e catorze escravos, chegaram a Moçambique a 25 de maio de 1553, onde narraram o que tinham presenciado, e dali foram à Índia”.

São estes acontecimentos trágicos dos “dois amantes míseros” que, para além de mereceram uma justa celebração n’”Os Lusíadas”, inspiraram a “Elegíada”, de Luís Pereira Brandão, o poema “Naufrágio e Lastimoso Sucesso da Perdição de Manuel de Sousa Sepúlveda”, de Jerónimo Corte-Real, e a mais célebre relação de naufrágio de todas as compiladas na “História Trágico-Marítima”, de Bernardo Gomes de Brito.

E também a canção “Manuel de Sousa Sepúlveda”, um tema de Fausto que faz parte do seu álbum de 1994, “Crónicas da Terra Ardente”.

Vamos ouvir…

A Organização

Fonte: Isabel Rio Novo, “Fortuna, Caso, Tempo e Sorte – Biografia de Luís Vaz de Camões”, Lisboa, Contraponto, 2024, pp. 289-291.

 


 

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