Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 7
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 7
“Numa mão sempre a espada e noutra a pena.”
Olhai que há tanto tempo que, cantando
O vosso Tejo e os vossos Lusitanos,
A Fortuna me traz peregrinando,
Novos trabalhos vendo e novos danos:
Agora o mar, agora experimentando
Os perigos Mavórcios inumanos,
Qual Cânace, que à morte se condena,
Numa mão sempre a espada e noutra a pena.
Luís de Camões, “Os Lusíadas”, VII, 79
Nesta reflexão final do canto VII de “Os Lusíadas”, Camões queixa-se da ingratidão de que é vítima. Ele que sonhava com a coroa de louros dos poetas, vê-se votado ao esquecimento e à sorte mais mesquinha, sem ver reconhecido pelos que detêm o poder o serviço que presta à Pátria.
Usando um texto de tom marcadamente autobiográfico, faz referência a várias etapas do seu percurso e suplica auxílio porque, segundo diz, teme que o barco da sua vida e da sua obra não chegue a bom porto. Uma vida que tem sido cheio de adversidades: a pobreza, a desilusão, perigos do mar e da guerra, “Numa mão sempre a espada e noutra a pena.”
Neste retrato, surge, novamente, o modelo de virtude e de dedicação heroica. E, no verso “Numa mão sempre a espada e noutra a pena”, destaca as suas facetas de guerreiro e de poeta, valorizando a conjugação da bravura com o amor à poesia.
Adaptando aos tempos que correm, em pleno século XXI, dir-se-ia que o cidadão exemplar é o humanista, é aquele que alcança o equilíbrio perfeito entre a vida ativa e a vida contemplativa.
Outra abordagem
Uma abordagem intertextual do excerto permite-nos, no entanto, alcançar outras dimensões. É o que propomos, agora, guiados pelo saber de Frederico Lourenço, num texto de 2017:
“(…) Todos conhecemos o famoso verso do canto VII d' ‘Os Lusíadas’: ‘numa mão sempre a espada e noutra a pena’, com que Camões se descreve a si próprio.
A maior parte das pessoas pensa: ah, pois! O grande herói da Índia, dos Descobrimentos, do Império! A espada e a pena, as armas e as letras!
Só que não é nada disso. A espada de que fala Camões é outra espada. É a espada dada por um pai à filha para ela se suicidar. Porquê? Porque ela engravidou do próprio irmão.
Leiamos a citação toda: ‘Qual Cânace que à morte de condena, / Numa mão sempre a espada e noutra a pena.’
Tudo está em percebermos quem é esta Cânace, a quem Camões se compara. Ora Cânace é uma figura das ‘Heróides’ do poeta romano Ovídio, muito lido e imitado por Camões em toda a sua obra. Os versos de Camões são uma recriação dos seguintes versos de Ovídio: ‘na mão direita segura o cálamo; na outra segura a espada impiedosa’ (‘Heróides’ 11,3).
Com estas palavras, pois, Camões está a colocar-se na pele de:
1. uma mulher;
2. apanhada numa situação tão extrema da sua vida;
3. grávida do próprio irmão;
4. que acaba de receber do pai a espada para se suicidar.
Mas a questão complica-se ainda mais. Temos de ver agora que os versos do canto VII d' ‘Os Lusíadas’ retomam, por sua vez, os seguintes versos do canto V: ‘numa mão a pena e noutra a lança’.
Quem é aqui o alter-ego de Camões? Júlio César. Basta ir ver a estância 96 do canto V. E não é difícil percebermos que Camões tem gosto em se identificar com a figura de Júlio César, pois também César era um autor de quem se dizia que salvara os seus escritos a nado.
No entanto, este mesmo Júlio César também era referido nas biografias antigas romanas, conhecidas na época de Camões, como homem de todas as mulheres e mulher de todos os homens.
Juntemos a isto o canto III d' ‘Os Lusíadas’, em que Camões se compara a Orfeu, por sua vez explicitamente referido no canto X das ‘Metamorfoses’ de Ovídio como autor (em latim ‘auctor’) de amores homossexuais.
Dizem que, nas sociedades repressivas como era o Portugal de Camões dominado pela Inquisição, quanto mais inteligentes os textos menos os censores os vão entender. Felizmente, o poema de Camões é tão inteligente que, em 2017, ainda estamos a tentar entendê-lo.”
Frederico Lourenço, Coimbra, 2017-10-11
Disponível em https://www.facebook.com/professor.frederico.lourenco/posts/816270089862430/, acedido em 11/11/2024
A Organização
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 6
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 6
(…) «quem não sabe arte não na estima.»
«Enfim, não houve forte Capitão,
Que não fosse também douto e ciente,
Da Lácia, Grega ou Bárbara nação,
Senão da Portuguesa tão-somente.
Sem vergonha o não digo, que a razão
De algum não ser por versos excelente,
É não se ver prezado o verso e rima,
Porque quem não sabe arte não na estima.»
Luís de Camões, “Os Lusíadas”, V, 97.
Nas estrofes finais do canto V, Camões critica os Portugueses, seus contemporâneos, porque desprezam a poesia, as letras, a arte em geral.
De facto, grandes figuras da Antiguidade Clássica, seja da Grécia, seja de Roma, para além da arte bélica, tinham grande erudição e cultura.
Já no que diz respeito a Portugal, o narrador lamenta, envergonhado, que a epopeia da expansão marítima só tenha produzido heróis de força bruta, sem qualquer estima pela arte e pela cultura:
«Enfim, não houve forte Capitão,
Que não fosse também douto e ciente,
Da Lácia, Grega ou Bárbara nação,
Senão da Portuguesa tão-somente.»
Neste queixume, Camões inclui o próprio Vasco da Gama, pela indiferença que manifestava quanto à divulgação dos seus feitos, ao contrário do que se tinha passado com os heróis da Antiguidade Clássica.
Ora, a verdade é que os Portugueses são bravos e destemidos e o próprio Vasco da Gama superou os antigos em heroicidade. Mas esta heroicidade só será imortalizada se for cantada pelos poetas, se houver sensibilidade para apreciar e acarinhar a arte, a poesia. Doutro modo, perde-se a nossa memória coletiva e perde-se a força inspiradora do exemplo, que incentiva o homem à imitação ou superação desses feitos sublimes e mobiliza para novos feitos.
Daí a importância do ideal de herói renascentista, um herói que concilia as armas e as letras. E daí o lamento do poeta, que não esconde a sua perplexidade perante o facto de os Portugueses serem “tão ásperos”, “tão austeros, / tão rudos e de engenho tão remisso” (V, 98), e, pior ainda, não se preocuparem minimamente com esta sua pobre condição.
Séculos e séculos depois, este desafio continua intemporal.
Em 2024, cada um dos Portugueses manifesta apetência pela arte e estima a cultura?
Quem não sabe arte não a estima. E quem não estima a arte não valoriza a dimensão libertadora da condição humana!
A arte humaniza, a arte salva! A arte eleva-nos ao universo da criação.
Mas, afinal, o que é arte?
Eis uma reflexão de “GCF Global”…
A Organização
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 4
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 4
Endechas a Bárbara escrava
Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que pera meus olhos
Fosse mais fermosa.
Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.
Uma graça viva,
Que neles lhe mora,
Pera ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.
Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão,
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbara não.
Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela, enfim, descansa
Toda a minha pena.
Esta é a cativa
Que me tem cativo;
E, pois nela vivo,
É força que viva.
Luís de Camões
Fonte: https://www.escritas.org/pt/t/2101/endechas-a-barbara-escrava
“Endechas a Bárbara escrava”, ou cativa, é mais um conhecido poema de Camões, notável pela forma como, em pleno seculo XVI, glorifica uma imagem da mulher distinta da do ideal clássico, vigente na época.
Escrita na “medida velha”, com versos de cinco sílabas (a chamada redondinha menor), a composição está em conformidade com a herança da poesia palaciana.
Num registo leve, de enorme suavidade, esta é uma das poucas poesias de Camões em que se fala de um amor correspondido, assim como da felicidade proporcionada pela “presença serena", pela "doce figura” idealizada e perfeita daquela mulher de outra raça, por quem se apaixonara.
Mas “Endechas a Bárbara cativa" é, sobretudo, uma obra-prima genial, pela ousadia e originalidade com que o artista rompe com o modelo clássico e convencional, que exaltava a beleza loura, a mulher branca, de faces rosadas, tal como a Laura de Petrarca, a quem todos imitavam.
Aqui, temos um canto de louvor à beleza, isso sim, de uma mulher negra e escrava, o que para a época constitui algo de profundamente inovador e até surpreendente.
Para além disso, faz um jogo de inversão de papéis: uma escrava, socialmente falando, transforma-se em poderosa “senhora / de quem é cativa”, isto é, do sujeito poético agora preso a ela, afetivamente.
“Endechas a Bárbara escrava” já tem quase cinco séculos de vida. E continua um verdadeiro apelo inspirador à Humanidade e ao encontro de culturas. Um hino intemporal ao único sentimento capaz de aproximar povos, de unir corações: o amor!
Aqui fica o convite para escutar o poema, interpretado por Zeca Afonso, em 1968, no disco “Cantares do Andarilho”: https://www.youtube.com/watch?v=hH3Qyy53t1w
“Endechas a Bárbara escrava” remete ainda para uma abordagem intertextual com “Lágrima de preta”, um poema do século XX, da autoria de António Gedeão:
https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=lR3ho-ptqy0
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 5
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 5
Alma minha gentil, que te partiste
Alma minha gentil, que te partiste
tão cedo desta vida, descontente,
repousa lá no Céu eternamente,
e viva eu cá na terra sempre triste.
Se lá no assento etéreo, onde subiste,
memória desta vida se consente,
não te esqueças daquele amor ardente
que já nos olhos meus tão puro viste.
E se vires que pode merecer-te
alguma coisa a dor que me ficou
da mágoa, sem remédio, de perder-te,
roga a Deus, que teus anos encurtou,
que tão cedo de cá me leve a ver-te,
quão cedo de meus olhos te levou.
Luís de Camões, “Rimas”, org. Fernão Rodrigues Lobo Soropita, Lisboa, 1595; “Obras de Luís de Camões”, Porto, Lello & Irmão Editores, 1970, p. 9.
No manuscrito da “Década VIII”, atribuído a Diogo do Couto, lê-se: «Vindo de lá [da China] se foi perder na costa de Sião [Tailândia], onde se salvaram todos despidos e o Camões por dita escapou com as suas “Lusíadas”, como ele diz nelas, e ali se afogou ũa moça china muito fermosa com que vinha embarcado e muito obrigado, e em terra fez sonetos à sua morte em que entrou aquele que diz: “Alma minha gentil, que te partiste”…».
O poeta dirige o seu discurso à mulher amada, que, para sua tristeza, morreu jovem: “Alma minha gentil, que te partiste/ Tão cedo desta vida, descontente,”.
Ao longo do soneto, vai-lhe fazendo alguns pedidos, utilizando frases imperativas, tais como: “repousa lá no céu…”, “não te esqueças daquele amor ardente…” e “roga a Deus…”. Afirma também que está em sofrimento e aponta as razões desta tristeza, que se ligam, essencialmente, à ausência da amada, marcada pela distância entre o céu – local de morada dela: ”repousa lá no Céu” – e a terra, espaço de vida do poeta: “viva eu cá na terra”. Estas referências espaciais surgem associadas aos termos com valor deíctico “cá” e “lá”, que reforçam a relação de afastamento entre os dois amantes.
Assim, a solução para o sofrimento do sujeito poético seria a aproximação entre os dois e, por isso, ele pede-lhe que rogue a Deus para o levar rapidamente para junto dela: “Roga a Deus, que teus anos encurtou,/ Que tão cedo de cá me leve a ver-te,/ Quão cedo de meus olhos te levou.”
Aqui fica o convite para escutar o poema, interpretado por Simone de Oliveira, com música de Alfredo Marceneiro…
A Organização
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 3
Camões: Embarca Engenho e Arte – Edição 3
Amor é fogo que arde sem se ver
Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
Luís de Camões, “Lírica - Terceiro volume das Obras Completas” (fixação do texto de Hernâni Cidade), Lisboa, Círculo de Leitores, 1980, p. 188.
Neste soneto, Camões aborda um tema muito caro à poesia, explorado há séculos e séculos por inúmeros filósofos e artistas.
Seguindo os modelos de Petrarca (1304-1374), o poeta usa o pensamento lógico para expor e tentar definir um sentimento profundo e complexo – o amor.
Ao longo das duas quadras e do primeiro terceto, desenvolve o seu raciocínio através da apresentação de ideias opostas, enumerando uma série de imagens metafóricas, de paradoxais contraposições. Com este recurso à chamada antítese, tenta uma explicação para um conceito tão enigmático, para um sentimento tão ambíguo, como o amor.
O raciocínio lógico do poeta termina com a conclusão, no último terceto, apresentada em forma de interrogação, o que nos remete para o plano da reflexão:
“Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?”
O poeta explora, assim, com perfeição, a dualidade e ambiguidade do amor. Dir-se-ia que toca no âmago de um dos sentimentos mais complexos, que na sua vivência provoca, ao mesmo tempo, tanto prazer e tanto sofrimento.
Com este soneto, Luís de Camões aborda um tema universal, oferecendo-nos um registo intemporal, com figuras e definições de rara beleza.
Vale a pena (re)ler o poema. E ouvi-lo, dito e cantado…
Eis o soneto dito por Eunice Muñoz (https://www.youtube.com/watch?v=gwBaVcbGWgQ) e pela atriz brasileira Sílvia Pfeifer (https://ensina.rtp.pt/artigo/amor-e-um-fogo-que-arde-sem-se-ver-de-luis-de-camoes/).
Outras interpretações do poema, agora cantado por Camané & Mário Laginha (https://www.youtube.com/watch?v=YCU0hInDv6Q) e pelos Pólo Norte e Miguel Gameiro (https://www.youtube.com/watch?v=3SjqccmEH6g).