Um olhar sobre…

Lágrima de preta

(António Gedeão)

 

Encontrei uma preta

que estava a chorar

pedi-lhe uma lágrima

para a analisar

 

Recolhi a lágrima

com todo o cuidado

num tubo de ensaio

bem esterilizado

 

Olhei-a de um lado

do outro e de frente

tinha um ar de gota

muito transparente

 

Mandei vir os ácidos

as bases e os sais

as drogas usadas

em casos que tais

 

Ensaiei a frio

experimentei ao lume

de todas as vezes

deu-me o qu'é costume

 

Nem sinais de negro

nem vestígios de ódio

água (quase tudo)

e cloreto de sódio

 

O poema de Gedeão, Lágrima de preta, surge-nos desde logo com características que o aproximam de uma narrativa, como que querendo evidenciar os diversos passos de uma história que o poeta nos quer contar. A prová-lo estão os verbos de acção, ou operativos, no tempo próprio da narração (pretérito perfeito) e com um aspecto de instantaneidade na execução das acções, encontrei, recolhi, olhei-a, mandei vir, ensaiei, experimentei. Ao mesmo tempo, estes verbos são etapas de um processo em curso, a análise laboratorial de uma lágrima, comprovada pelo recurso a vocábulos próprios do trabalho minucioso do cientista: tubo de ensaio, ácidos, bases, sais, cloreto de sódio…

E qual é a história que nos quer contar?

O poeta pretende fundamentalmente denunciar preconceitos, pré-juízos que comandam uma certa ideologia de que há raças, povos ou gentes que são superiores a outros, e que tem servido de justificação, ao longo da História, para atitudes e comportamentos de marginalização, de exploração, de exclusão, de intolerância (racismo e xenofobia) perante quem é diferente, seja na cor, na raça ou no credo.

António Gedeão, recorrendo a uma fina, mas, ao mesmo tempo, cáustica ironia, recolhe uma lágrima de uma preta (de notar a escolha intencional do nome preta, de uma carga usualmente negativa) com o objectivo científico – logo irrefutável no resultado – de a analisar quimicamente. Na última estrofe, o cientista e poeta é peremptório: não encontrou nela vestígios de negro… isto é, nada de diferente de uma qualquer outra lágrima, de uma qualquer outra pessoa. E mais ainda: não encontrou nela quaisquer sinais de ódio, querendo sugerir a atitude pacífica, de compreensão e de tolerância de que é portadora esta preta / que estava a chorar. Teria, com certeza, razões de sobra para chorar!

O poeta suscita em nós uma reflexão sobre o essencial e o acessório, sobre o interior e o exterior, sobre a essência e a aparência, sobre o modo como convivemos com o outro e como aceitamos a diferença, sendo este poema (tal como outros do mesmo autor) o testemunho de uma simbiose perfeita entre a ciência e a poesia, a vida e o sonho, a lucidez e a esperança que sempre marcaram o poesia de Rómulo de Carvalho, licenciado em Ciências Físico-Químicas.

Esta mensagem tão profunda, esta lição tão cheia de humanismo, soube o poeta exprimi-la de uma forma muito simples, numa estrutura estrófica de gosto popular, recorrendo para isso à quadra e ao metro de redondilha, o que confere ao poema uma musicalidade e um ritmo próprios, assim como uma intencionalidade muito precisa.

 

António Rocha

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